quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Postal de Boas Festas


Óleo sobre Tela 60x80cm
"Brincar ao Gato e ao Rato"
Rui Pascoal - 2015

Sete vidas tem o gato
Não é justo, disse o rato…
Piu, piu, piu
E nunca mais se (ou)viu.



Com votos de Boas Festas para todos vós.


domingo, 22 de novembro de 2015

Pedro Barroso




Estados Unidos da Europa
Poema de Pedro Barroso
– in “Das Mulheres e do Mundo” Ed Mirante, 99

Quando a Europa existir
E o velho escudo das quinas
for apenas uma saudade
nesse dia hei-de subir
ao castelo de Penedono
e gritar uma saúde
ao tempo de nunca vir
mais ao tempo de lembrar
hei-ir ao Restelo contar
histórias de marinheiros
falar aos jovens de Alcácer
de Gonçalo Mendes da Maia
Jerumenha, Évoramonte
Aljubarrota, Atoleiros
Hei-de subir aos penhascos,
às torres de Marialva,
à menagem de S Jorge,
de Belver e Guimarães
e recordar outra vida,
outro país que já houve
de gente dada à bravura
que ao Sul criou espaços
na conquista da planura
gente com alma e com espada
e artes de marear
e hei-de ficar cansado
mas hei-de ficar saciado
nesse espaço fabuloso
recriado do passado
em sonho particular
esquecido da tal verdade
corridos trinta ou cem anos
Estados Unidos da Europa
país novo e florescente
tal me orgulha e me transcende...
- Ah! Mas nunca me arrepende
ter feito Alcácer Quibir
ou batalha do Salado
com o estandarte entre dentes!...
Nesse dia, em mirandum
cantarei ao desafio
navegarei pelo Douro
até ao fim desse rio
onde brindarei com Porto
e perdido na montanha
beberei águas de fonte
da pátria de Portugal
e serei europeu, sim
serei até, mundial
mas primeiro,
vai uma alheira
do fumeiro de Mirandela;
moreia frita de Sagres;
cozido ilhéu na panela;
e as amêijoas de S Jorge;
as bananas da Madeira;
os verdes do velho Minho;
os cavalos do Ribatejo
mais as camisas de linho;
e o cante do Alentejo;
e este mar frente a Lisboa,
onde a ralé marinheira
canta o fado cacilheiro
e atraca corpo e navio
em romances de inventar
Levem a fama, a bandeira
levem o nome e o preito
quem vai mandar no meu peito
vai ser o nome esquecido
de um velho país ao canto
desse novo Espaço Unido
onde tudo, campo e praia
ao falar-nos do passado
vai falar-nos dum Futuro
outra vez por restaurar
Portugal era seu nome.
- Crianças desse reinado
aprendam a soletrar...
Existiu na sua Língua
nos seus artistas e heróis
nos pensadores e no mar.
Já foi um país inteiro
de palavras e aventura
e se então, nesse lameiro
de Babel no linguajar,
nos obrigarem ao sonho
embalado na censura,
empacotado e vulgar,
que me sobre essa loucura
de ir para a rua gritar,
nesta língua de Camões,
pelo tempo que há-de vir
no país que não morreu
no país que há-de voltar !

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Aniversário


Óleo sobre tela 80x60cm
"Aniversário"
Rui Pascoal - 2015


Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus! o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Nós...


Óleo sobre Tela 30x60 cm
"Nós..."
Rui Pascoal - 2015


A mão que esconde mais do que oferece,
os olhos de presa dominando o caçador.
E os teus lábios que murmuram a prece
de quem só reza no instante do amor.

E se falasse dos teus olhos, dos teus braços
desse corpo em que me perco e te ganho,
não mais acabaria o que tem de acabar;

uma respiração de suspiros e de abraços
neste canto em que és tudo o que eu tenho,
nesta viagem em que não tem fundo o mar.


Nuno Júdice

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Mar Sonoro




MAR SONORO

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho.
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
In Dia do mar, 1947 



P.S. (Qualquer dia volto... ou não).




domingo, 19 de julho de 2015

Bom dia!



Flor de acaso ou ave deslumbrante,
Palavra tremendo nas redes da poesia,
O teu nome, como o destino, chega,
O teu nome, meu amor, o teu nome nascendo
De todas as cores do dia!

(Alexandre O'Neill)


quinta-feira, 18 de junho de 2015

Irlanda, Junho 2015



Soube-me tão bem...


"O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já."

(José Saramago, in “Viagem a Portugal”)

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Este Povo Que É Meu


Óleo sobre Tela - 130 x 70 cm
"Este Povo Que É Meu"
Rui Pascoal - 2015


Por seres como és, demasiado crédulo tosco e manso
Patos bravos, porcos sujos, cabras ou coelhos, 
nunca te darão descanso.

Nada resolve ficares assim de joelhos a rezar ao santo
Ouve este galo sem poleiro, 
levanta-te de vez, deixa de ser tanso.


quinta-feira, 14 de maio de 2015

Achas que sabes cantar?


Ainda não perdi o pio...


Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
o teu sorriso puro,
a tua graça animal.
...

(Eugénio de Andrade)

....

E tu, achas que sabes cantar?

:)


domingo, 3 de maio de 2015

Dia da Mãe


"Pequeno Poema"

Quando eu nasci, 
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias, 
nem o Sol escureceu, 
nem houve estrelas a mais... 
Somente, 
esquecida das dores, 
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci, 
não houve nada de novo 
senão eu.

As nuvens não se espantaram, 
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme, 
bastava 
toda a ternura que olhava 
nos olhos de minha Mãe...

(Sebastião da Gama, in 'Antologia Poética')

.......

Hoje, com 90 anos, a minha mãe ainda mantém este bonito sorriso. 

terça-feira, 28 de abril de 2015

O sorriso, precisa de aviso?




O Sorriso

Creio que foi o sorriso,
sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.


(Eugénio de Andrade )



segunda-feira, 13 de abril de 2015

Dia do ósculo?




Não tem que ser (só) hoje, mas.... considerem-se todos devidamente osculados.

:)


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Original(mente)




"... Olhem sempre em frente, olhem o Sol, não tenham medo de errar, sendo originais, iconoclastas e anti, o mais anti que puderem, e verdadeiros, fugindo aos velhos caminhos trilhados de pé posto e a todas as conjuras dos velhos do Restelo. Cultivem a inquietação como fonte de renovamento"

(Aquilino Ribeiro)


sexta-feira, 27 de março de 2015

Leiriartes




Eu vou. Não querem aparecer por lá?

Bom fim de semana!


segunda-feira, 23 de março de 2015

Verão


Óleo sobre Tela - 30x40cm
"Verão"
Rui Pascoal - 2015


"...Olha o Verão que já não tarda
disse-me à tarde o teu peito
por mais frutos que ele traga
não há nenhum tão perfeito..."


(David Mourão Ferreira)


quinta-feira, 19 de março de 2015

Dia do Pai


Hoje e sempre, grato eternamente.

........


O habitante
(ao meu pai)


Se partiste, não sei.
Porque estás,
tanto quanto sempre estiveste.

Essa tua,
tão nossa, presença
enche de sombra a casa
como se criasse,
dentro de nós,
uma outra casa.

No silêncio distraído
de uma varanda
que foi o teu único castelo,
ecoam ainda os teus passos
feitos não para caminhar
mas para acariciar o chão.

Nessa varanda te sentas
nesse tão delicado modo de morrer
como se nos estivesse ensinando
um outro modo de viver.

Se o passo é tão celeste
a viagem não conta
senão pelo poema que nos veste.

Os lugares que buscaste
não têm geografia.

São vozes, são fontes,
rios sem vontade de mar,
tempo que escapa da eternidade.

Moras dentro,
sem deus nem adeus.


Mia Couto, in vagas e lumes.



domingo, 15 de março de 2015

A Vida é um Sopro


Óleo sobre Tela 30x40cm
"A Vida é um Sopro"
Rui Pascoal - 2015

A Vida

A vida é o dia de hoje,
A vida é o ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai;
A vida dura num momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave, 
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave:
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares, 
Uma após outra lançou,
A vida - pena caída
Da asa da ave ferida
De vale em vale impelida
A vida o vento levou!

....

(João de Deus)


segunda-feira, 9 de março de 2015

Primavera


Óleo sobre Tela 30x40cm
"Primavera"
Rui Pascoal - 2015


"Vem aí a Primavera
disse-me hoje a tua boca
depois do mais que me dera
o que vem é coisa pouca..."

(David Mourão Ferreira)


quinta-feira, 5 de março de 2015

Desgoverno...


“Tempos virão em que o governarão as terras vãs e os filhos das barregãs.”

In “O Malhadinhas” de Aquilino Ribeiro


segunda-feira, 2 de março de 2015

Mentira(s)...



Óleo sobre Tela - 50x40cm
"Anzol..."
Rui Pascoal - 2015

"Eu não sei se hei-de fugir
Ou morder o anzol
Já não há nada de novo aqui
Debaixo do sol"...





segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

(H)era uma vez...


Óleo sobre tela - 30x40cm
(H)era uma vez...
Rui Pascoal - 2015


"Com mãos de hera
Enlaço teu corpo
Oferto em espera"

(Eugénia Tabosa)


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Metamorfose


Óleo sobre Tela 30x40cm
"Metamorfose"
Rui Pascoal - 2015


No teu rosto
competem mil madrugadas

Nos teus lábios
a raíz do sangue
procura suas pétalas

A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego


(Mia Couto)



terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Na Lua...


Óleo sobre Tela 24x30cm
"Na Lua..."
Rui Pascoal - 2015

Astro, corpo celeste, estrela... neste firmamento.
Brilha, ilumina, e guia como um farol, meu pensamento.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Crença ou Cepticismo?

Óleo sobre Tela 60x80cm
"Cristo"
Rui Pascoal - 2015

“Não quero viver num mundo sem catedrais. Preciso da sua beleza e da sua transcendência. Preciso delas contra a vulgaridade do mundo. Quero erguer o meu olhar para seus vitrais e deixar-me cegar pelas cores prodigiosas. Preciso do seu esplendor. Preciso dele contra a suja uniformidade das fardas. Quero cobrir-me com a frescura seca das igrejas. Preciso do seu silêncio imperioso. Preciso dele contra a berraria na parada da caserna e o arrazoar frívolo dos oportunistas. Quero escutar o eco oceânico do órgão, essa inundação de sons sobrenaturais. Preciso dele contra o chinfrim ridículo da música de marcha. Amo as pessoas que rezam. Preciso da sua imagem. Preciso dela contra o veneno insidioso do supérfluo e negligente. Quero ler as poderosas palavras da Bíblia. Preciso da força irreal da sua poesia. Preciso dela contra o aviltamento da linguagem e a ditadura das senhas. Um mundo sem estas coisas seria um mundo no qual eu não gostaria de viver.

E no entanto, existe ainda um outro mundo no qual eu não quero viver: um mundo onde o corpo e o pensar independente são condenados e onde coisas que fazem parte do melhor que podemos experimentar são estigmatizadas como pecados. O mundo em que nos é exigido amar os tiranos, os torcionários e assassinos traiçoeiros, mesmo quando as suas brutais passadas marciais ecoam atordoantes pelas vielas, ou quando se esgueiram, silenciosos e felinos, como sombras cobardes, pelas ruas e travessas, para enterrar pelas costas, o aço faiscante. Entre todas as afrontas que do alto púlpito foram lançadas às pessoas, uma das mais absurdas é, sem dúvida, a exigência de perdoar e até de amar essas criaturas. Mesmo se alguém o conseguisse, isso significaria uma falsidade sem igual e um esforço de abnegação desumano que teria, forçosamente, que ser pago com a mais completa atrofia. Esse mandamento, esse desvairado e perverso mandamento do amor para com o inimigo serve apenas para quebrar as pessoas, para lhes roubar toda a coragem e toda a confiança em si próprias, e para as tornar maleáveis nas mãos dos tiranos, para que elas não consigam encontrar a força para se revoltarem, se necessário pegando em armas.

Eu venero a palavra de Deus, pois amo a sua força poética. E abomino a palavra de Deus, pois odeio a sua crueldade. O amor é um amor difícil, pois tem constantemente que distinguir entre o fulgor das palavras e a exaltada submissão a uma divindade presumida. O ódio é um difícil ódio, pois como é que podemos permitir-nos odiar palavras que participam da própria melodia da vida nesta parte do mundo? Palavras que nos ensinaram, desde o início, o que significa a reverência? Palavras que para nós foram como finais, quando começámos a pressentir que a vida visível não pode ser toda a vida? Palavras sem as quais não seríamos aquilo que somos?

Mas não nos esqueçamos: são palavras que exigem de Abraão que ele sacrifique o seu próprio filho, como se de um bicho se tratasse. O que é que fazemos quando com a nossa ira quando lemos isso? O que pensar de um tal Deus? Um Deus que acusa Job de disputar com ele quando nada sabe e nada entende? Quem foi que o criou assim? E porque é menos injusto quando Deus lança, sem qualquer motivo, alguém para a desgraça do que quando é um comum mortal a fazê-lo? Não terá Job todos os motivos para a sua queixa?

A poesia da Palavra divina é tão avassaladora que tudo silencia. Toda e qualquer contestação acaba reduzida a um lastimável ladrar. É por isso que não basta pôr a Bíblia de parte, temos antes de a atirar fora, assim que estejemos fartos dos seus desaforos e da servidão que ela nos impõe. Manifesta-se nela um Deus avesso à vida e à alegria, um Deus que só pretende constranger a poderosa dimensão de uma vida humana, o grande círculo que ela consegue descrever – desde que lhe concedam para tal a liberdade – e apertá-la até que se reduza a um só e contraído ponto da obediência. Amarfanhados pela mágoa e suportando o peso dos pecados, ressequido pela sujeição e pela infâmia da confissão, que devemos arrastar-nos até à sepultura, a testa marcada pela cruz de cinza, na esperança mil vezes refutada de uma vida melhor ao seu lado. Mas como é que poderíamos passar melhor ao lado de alguém que antes nos roubou toda a alegria e nos privou de todas as liberdades?

E, no entanto, as palavras que Dele vêm e que para Ele se dirigem são de uma sedutora beleza. Como as amei nos meus tempos de sacristão! Como me deixei embriagar por elas à luz das velas do altar! Como me pareceu claro, claro como a luz, que aquelas palavras fossem a medida de todas as coisas! Como achava incompreensível que as pessoas dessem importância a outras palavras, quando cada uma delas só podia significar uma condenável dispersão e uma perda da essência! Ainda hoje paro quando escuto um canto gregoriano; e por um instante irreflectido sinto-me triste porque o antigo arrebatamento deu definitivamente lugar à rebelião. Uma rebelião que se ateou em mim como uma labareda quando, pela primeira vez, ouvi as seguintes palavras: sacrificium intellectus.

Como é possível sermos felizes sem a curiosidade, sem perguntas, dúvidas e argumentos? Sem o prazer de pensar? Estas duas palavras, que são como o golpe da espada que nos decapita, não significam outra coisa senão a imposição de dirigir o nosso sentir e actuar contra o nosso próprio pensar; elas representam um convite a uma dilaceração total, a ordem para que sacrifiquemos precisamente aquilo que constitui o núcleo da felicidade em cada um de nós – a unidade e a concordância internas da nossa vida. O escravo no porão da galera está acorrentado, mas pode pensar o que quiser. Porém, o que Ele, o nosso Deus, nos impõe é que interiorizemos, com o nosso próprio esforço, a nossa própria servidão, e que, ainda por cima, o façamos com alegria e de livre vontade. Poderá haver maior escárnio?

Na sua omnipresença, o Senhor é alguém que, dia e noite, nos observa, a cada hora, a cada minuto, a cada segundo Ele regista as nossas acções e o nosso pensamento. Nunca nos permite um momento sequer em que possamos estar a sós connosco próprios. Mas o que é um ser humano sem segredos? Sem pensamentos e desejos que apenas ele e só ele conhece? Todos os torcionários, os da Inquisição e os actuais sabem-no bem: corta-lhe a retirada para dentro, nunca apagues a luz, nunca o deixes sozinho, nega-lhe o sono e o sossego – e ele acabará por falar. O facto da tortura nos roubar a alma significa que ela nos nega a possibilidade de estarmos sozinhos connosco próprios, algo que necessitamos como do ar para respirar. Será que o Senhor, o nosso Deus, não se apercebeu de que com a sua desenfreada curiosidade e a sua repugnante indiscrição nos rouba a alma, uma alma, ainda por cima, que se quer imortal?

Quem é que quer a sério ser imortal? Quem é que deseja viver para toda a eternidade? Como seria entediante e vazio saber que o que hoje acontece, neste mês ou neste ano, não tem qualquer significado. Os dias, os meses e os anos sucedem-se indefinidamente. Infinitamente, no sentido literal da palavra. Se isso assim fosse, haveria algo que ainda tivesse importância? Não precisaríamos de contar com o tempo, não perderíamos oportunidades, nunca teríamos de nos apressar. O facto de fazermos uma coisa hoje ou deixá-la para amanhã seria indiferente, perfeitamente indiferente. Negligências milhões de vezes repetidas deixariam de ter, perante a perspectiva da eternidade, qualquer relevância, e não faria sentido lamentar algo, pois teríamos sempre tempo para recuperar. Nem sequer poderíamos entregar-nos à simples fruição do dia, pois esse prazer alimenta-se precisamente da consciência da caducidade do tempo, o ocioso é um aventureiro perante a morte, um cruzado contra o ditado da pressa. Se houvesse sempre e em todas as ocasiões tempo para tudo e mais alguma coisa, onde é que haveria ainda espaço para nos alegramos com um certo esbanjar do tempo disponível?

Um sentimento não é idêntico quando surge pela segunda vez. Ele tinge-se de outras nuances devido à percepção do seu retorno. Nós entediamo-nos e fartamo-nos dos nossos sentimentos quando eles se repetem demasiadas vezes ou duram demasiado tempo. Seria então forçoso que na alma imortal se instalasse um descomunal tédio e um gritante desespero, perante a certeza de que aquilo nunca teria fim. Os sentimentos querem desenvolver-se, e nós com eles. Eles tornam-se naquilo que são precisamente porque expulsam o que foram antes, e porque fluem em direcção a um futuro em que novamente se irão afastar de si próprios. O que é que aconteceria se esse caudal desaguasse no infinito? Dentro de nós teriam de gerar-se milhares de sensações que nós, habituados que estamos a uma dimensão limitada do tempo, nunca conseguiríamos imaginar. De modo que, pura e simplesmente, não sabemos o que nos é prometido quando ouvimos falar da vida eterna. Como é que seria continuarmos a ser nós próprios na eternidade, sem o consolo de podermos, um dia, vir a ser redimidos da obrigação de sermos nós? Não o sabemos e o facto de nunca o virmos a saber representa uma bênção. E isso porque de uma coisa podemos estar certos: esse paraíso da eternidade seria um inferno.

É a morte que concede ao instante a sua beleza e o seu pavor. Só através da morte é que o tempo se transforma num tempo vivo. Porque é que o Senhor, o Deus omnisciente, não sabe isso? Porque é que nos ameaça com uma imortalidade que só poderia significar um vazio insuportável?

Não quero viver num mundo sem catedrais. Preciso do brilho dos seus vitrais, do seu fresco recato, do silêncio imperioso. Preciso das marés sonoras do órgão e do sagrado ritual das pessoas em oração. Preciso da santidade das palavras, da elevação da grande poesia. De tudo isso preciso. Mas não menos necessito da liberdade e do combate contra tudo o que é cruel. Porque uma coisa não é nada sem a outra. E que ninguém me obrigue a escolher.”


In “Comboio Nocturno Para Lisboa” de Pascal Mercier.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Fantasia


Óleo sobre tela 60x80 cm
"Fantasia"
Rui Pascoal - 2015

Tivesse do escultor o engenho
Pegava teu tronco, fazia-te um lenho.
Sem pressa, goiva, maceta ou formão,
Nem grosa (para quê lima?), só a minha mão.

Torneava, tirava-te a casca,
Afagava o madeiro até virar lasca.
Lenha, musa, braseiro,
Beijar tua boca, pescoço, seio...

- Alto. Já chega! Basta!!!
Sonhas demasiado, artesão rasca.


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Pirata


Óleo sobre Tela 30x30 cm
"Pirata"
Rui Pascoal - 2014

Pirata, não provoques gente pacata. 


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

"Je suis Charlie"



Este mundo está doente...
Nunca deixou de estar
Mas que fique bem assente
Não nos podemos acobardar!


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Mulheres de Preto


Óleo Sobre Tela 80x60 cm
"As Velhas"
Rui Pascoal - 2014


Há muito que são velhas, vestidas
de preto até à alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.


Eugénio de Andrade