“Então diz-me lá como estamos de deve e haver. O
guarda-livros leva a mão ao queixo parecendo que vai entrar em meditação
profunda, abre um dos livros como para citar uma decisiva verba, mas emenda
ambos os movimentos e contenta-se com dizer, Saiba vossa majestade de que,
haver, havemos cada vez menos, e dever, devemos cada vez mais, Já o mês passado
me disseste o mesmo, E também o outro mês, e o ano que lá vai, por este andar
ainda acabamos por ver o fundo ao saco, majestade, Está longe daqui o fundo dos
nossos sacos, um no Brasil, outro na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo
com tão grande atraso que poderemos então dizer, afinal estávamos pobres e não
sabíamos, Se vossa majestade me perdoa a o atrevimento, eu ousaria dizer que
estamos pobres e sabemos, Mas, graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem
faltado, Pois não, e a minha experiência contabilística lembra-me todos os dias
que o pior pobre é aquele a quem o dinheiro não falta, isso se passa em
Portugal, que é um saco sem fundo, entra-lhe o dinheiro pela boca e sai-lhe
pelo cu, com perdão de vossa majestade, Ah, ah, ah, riu o rei, essa tem muita
graça, sim senhor, queres tu dizer na tua que a merda é dinheiro, Não,
majestade, é o dinheiro que é merda, e eu estou em muito boa posição para o
saber, de cócoras, que é como sempre deve estar quem faz as contas do dinheiro
dos outros. Este diálogo é falso, apócrifo, calunioso, e também profundamente
imoral, não respeita o trono nem o altar, põe um rei e um tesoureiro a falar
como arrieiros em taberna, só faltava que os rodeassem inflamâncias de
maritornes, seria um desbocamento completo, porém, isto que se leu é somente a
tradução moderna do português de sempre, posto o que disse o rei, A partir de
hoje, passas a receber vencimento dobrado para que te não custe tanto fazer
força, Beijo as mãos de vossa majestade, respondeu o guarda-livros.”
(José Saramago, in Memorial do Convento, 1982 Editorial Caminho)
Estamos de cócoras, encolhidos e humilhados, i.e., na merda, e nada fazemos para mudar???