quarta-feira, 11 de julho de 2012

Encolhidos, Agachados, Humilhados...



“Então diz-me lá como estamos de deve e haver. O guarda-livros leva a mão ao queixo parecendo que vai entrar em meditação profunda, abre um dos livros como para citar uma decisiva verba, mas emenda ambos os movimentos e contenta-se com dizer, Saiba vossa majestade de que, haver, havemos cada vez menos, e dever, devemos cada vez mais, Já o mês passado me disseste o mesmo, E também o outro mês, e o ano que lá vai, por este andar ainda acabamos por ver o fundo ao saco, majestade, Está longe daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que poderemos então dizer, afinal estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade me perdoa a o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos, Mas, graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem faltado, Pois não, e a minha experiência contabilística lembra-me todos os dias que o pior pobre é aquele a quem o dinheiro não falta, isso se passa em Portugal, que é um saco sem fundo, entra-lhe o dinheiro pela boca e sai-lhe pelo cu, com perdão de vossa majestade, Ah, ah, ah, riu o rei, essa tem muita graça, sim senhor, queres tu dizer na tua que a merda é dinheiro, Não, majestade, é o dinheiro que é merda, e eu estou em muito boa posição para o saber, de cócoras, que é como sempre deve estar quem faz as contas do dinheiro dos outros. Este diálogo é falso, apócrifo, calunioso, e também profundamente imoral, não respeita o trono nem o altar, põe um rei e um tesoureiro a falar como arrieiros em taberna, só faltava que os rodeassem inflamâncias de maritornes, seria um desbocamento completo, porém, isto que se leu é somente a tradução moderna do português de sempre, posto o que disse o rei, A partir de hoje, passas a receber vencimento dobrado para que te não custe tanto fazer força, Beijo as mãos de vossa majestade, respondeu o guarda-livros.”

(José Saramago, in Memorial do Convento, 1982 Editorial Caminho)

Estamos de cócoras, encolhidos e humilhados, i.e., na merda, e nada fazemos para mudar???

10 comentários:

  1. Precisamos de uma nova revolução, se no passado se conseguiu mudar as coisas com tão pouca informação porquê agora não tentar, só partilhar a revolta em redes sociais já não chega.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Belo, inteligente post, Rui. Aproveito para deixar algumas palavras de um brasileiro que admiro e acho que ilustra bem o que acontece por aqui, por aí e de modo geral, mundo afora:

    "Com a epidemia de escândalos que assola o Brasil, tem muita gente indignada com a falta de indignação dos brasileiros diante da roubalheira desenfreada.

    Será que os brasileiros não sabem reagir à hipocrisia e à falta de ética de muitos dos que os governam? Será que essa sequência de escândalos anestesiou as pessoas? Sim, porque nada mais choca!

    Nada mais a dizer a não ser declarar: eu estou indignado. E você?"

    |Salomão Schvartzman, advogado, sociólogo e jornalista brasileiro|

    ósculos & amplexos

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  4. Olá, Rui.
    Ao ler a sua postagem, ótima, por oportuna e assertiva, só me vem à memória os "discursos" do Álvaro Caseiro. Não sei se a sua memória recorda este homem ou mesmo se o chegou a conhecer. Ele era familiar de um outro Caseiro que tinha uma mercearia perto da sede do ACS, pegada à pensão da D. Dinha. Era doido (diziam) e quando se irritava, fechava-se no quarto, abria a janelita que dava para a estada e dissertava sobre a palavra m...
    Apetecia-me dizer como ele: isto é uma m... cag... do c.
    Não reagimos porque também é "uma pasta que se gasta em qualquer ocasião".
    (Perdoe a minha citação não estar ao nível da sua; está contudo ao nível dos tempos... e das vontades ou da falta delas...)

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  5. Excelente texto. Gosto de tua maneira de escrever. Fico.
    Um bj

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  6. Olá,

    vim agradecer a visita e conhecer o seu espaço. Texto ótimo, muito bem escrito.

    Realidade cruel.

    Grande abraço

    Leila

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  7. Gostei muito deste livro...aliás como da maioria das obras de Saramago!

    Abraço

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  8. "Cagam-nos" em cima e nós deixamo-nos estar muito quietinhos, não suceder pior... Cambada de carneiros!

    Como o Saramago nos conhecia bem!

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