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Óleo sobre Tela 60x80cm "Cristo" Rui Pascoal - 2015 |
“Não quero viver num mundo sem
catedrais. Preciso da sua beleza e da sua transcendência. Preciso delas contra
a vulgaridade do mundo. Quero erguer o meu olhar para seus vitrais e deixar-me
cegar pelas cores prodigiosas. Preciso do seu esplendor. Preciso dele contra a suja
uniformidade das fardas. Quero cobrir-me com a frescura seca das igrejas.
Preciso do seu silêncio imperioso. Preciso dele contra a berraria na parada da
caserna e o arrazoar frívolo dos oportunistas. Quero escutar o eco oceânico do
órgão, essa inundação de sons sobrenaturais. Preciso dele contra o chinfrim
ridículo da música de marcha. Amo as pessoas que rezam. Preciso da sua imagem.
Preciso dela contra o veneno insidioso do supérfluo e negligente. Quero ler as
poderosas palavras da Bíblia. Preciso da força irreal da sua poesia. Preciso
dela contra o aviltamento da linguagem e a ditadura das senhas. Um mundo sem estas
coisas seria um mundo no qual eu não gostaria de viver.
E no entanto, existe ainda um
outro mundo no qual eu não quero viver: um mundo onde o corpo e o pensar independente
são condenados e onde coisas que fazem parte do melhor que podemos experimentar
são estigmatizadas como pecados. O mundo em que nos é exigido amar os tiranos,
os torcionários e assassinos traiçoeiros, mesmo quando as suas brutais passadas
marciais ecoam atordoantes pelas vielas, ou quando se esgueiram, silenciosos e
felinos, como sombras cobardes, pelas ruas e travessas, para enterrar pelas
costas, o aço faiscante. Entre todas as afrontas que do alto púlpito foram
lançadas às pessoas, uma das mais absurdas é, sem dúvida, a exigência de
perdoar e até de amar essas criaturas. Mesmo se alguém o conseguisse, isso
significaria uma falsidade sem igual e um esforço de abnegação desumano que
teria, forçosamente, que ser pago com a mais completa atrofia. Esse mandamento,
esse desvairado e perverso mandamento do amor para com o inimigo serve apenas
para quebrar as pessoas, para lhes roubar toda a coragem e toda a confiança em
si próprias, e para as tornar maleáveis nas mãos dos tiranos, para que elas não
consigam encontrar a força para se revoltarem, se necessário pegando em armas.
Eu venero a palavra de Deus, pois
amo a sua força poética. E abomino a palavra de Deus, pois odeio a sua
crueldade. O amor é um amor difícil, pois tem constantemente que distinguir entre
o fulgor das palavras e a exaltada submissão a uma divindade presumida. O ódio
é um difícil ódio, pois como é que podemos permitir-nos odiar palavras que participam
da própria melodia da vida nesta parte do mundo? Palavras que nos ensinaram,
desde o início, o que significa a reverência? Palavras que para nós foram como
finais, quando começámos a pressentir que a vida visível não pode ser toda a
vida? Palavras sem as quais não seríamos aquilo que somos?
Mas não nos esqueçamos: são
palavras que exigem de Abraão que ele sacrifique o seu próprio filho, como se de
um bicho se tratasse. O que é que fazemos quando com a nossa ira quando lemos
isso? O que pensar de um tal Deus? Um Deus que acusa Job de disputar com ele
quando nada sabe e nada entende? Quem foi que o criou assim? E porque é menos
injusto quando Deus lança, sem qualquer motivo, alguém para a desgraça do que quando
é um comum mortal a fazê-lo? Não terá Job todos os motivos para a sua queixa?
A poesia da Palavra divina é tão
avassaladora que tudo silencia. Toda e qualquer contestação acaba reduzida a um
lastimável ladrar. É por isso que não basta pôr a Bíblia de parte, temos antes
de a atirar fora, assim que estejemos fartos dos seus desaforos e da servidão
que ela nos impõe. Manifesta-se nela um Deus avesso à vida e à alegria, um Deus
que só pretende constranger a poderosa dimensão de uma vida humana, o grande
círculo que ela consegue descrever – desde que lhe concedam para tal a
liberdade – e apertá-la até que se reduza a um só e contraído ponto da
obediência. Amarfanhados pela mágoa e suportando o peso dos pecados, ressequido
pela sujeição e pela infâmia da confissão, que devemos arrastar-nos até à
sepultura, a testa marcada pela cruz de cinza, na esperança mil vezes refutada
de uma vida melhor ao seu lado. Mas como é que poderíamos passar melhor ao lado
de alguém que antes nos roubou toda a alegria e nos privou de todas as
liberdades?
E, no entanto, as palavras que
Dele vêm e que para Ele se dirigem são de uma sedutora beleza. Como as amei nos
meus tempos de sacristão! Como me deixei embriagar por elas à luz das velas do
altar! Como me pareceu claro, claro como a luz, que aquelas palavras fossem a
medida de todas as coisas! Como achava incompreensível que as pessoas dessem
importância a outras palavras, quando cada uma delas só podia significar uma
condenável dispersão e uma perda da essência! Ainda hoje paro quando escuto um
canto gregoriano; e por um instante irreflectido sinto-me triste porque o
antigo arrebatamento deu definitivamente lugar à rebelião. Uma rebelião que se
ateou em mim como uma labareda quando, pela primeira vez, ouvi as seguintes
palavras: sacrificium intellectus.
Como é possível sermos felizes
sem a curiosidade, sem perguntas, dúvidas e argumentos? Sem o prazer de pensar?
Estas duas palavras, que são como o golpe da espada que nos decapita, não
significam outra coisa senão a imposição de dirigir o nosso sentir e actuar
contra o nosso próprio pensar; elas representam um convite a uma dilaceração
total, a ordem para que sacrifiquemos precisamente aquilo que constitui o
núcleo da felicidade em cada um de nós – a unidade e a concordância internas da
nossa vida. O escravo no porão da galera está acorrentado, mas pode pensar o
que quiser. Porém, o que Ele, o nosso Deus, nos impõe é que interiorizemos, com
o nosso próprio esforço, a nossa própria servidão, e que, ainda por cima, o
façamos com alegria e de livre vontade. Poderá haver maior escárnio?
Na sua omnipresença, o Senhor é
alguém que, dia e noite, nos observa, a cada hora, a cada minuto, a cada segundo
Ele regista as nossas acções e o nosso pensamento. Nunca nos permite um momento
sequer em que possamos estar a sós connosco próprios. Mas o que é um ser humano
sem segredos? Sem pensamentos e desejos que apenas ele e só ele conhece? Todos
os torcionários, os da Inquisição e os actuais sabem-no bem: corta-lhe a
retirada para dentro, nunca apagues a luz, nunca o deixes sozinho, nega-lhe o
sono e o sossego – e ele acabará por falar. O facto da tortura nos roubar a
alma significa que ela nos nega a possibilidade de estarmos sozinhos connosco
próprios, algo que necessitamos como do ar para respirar. Será que o Senhor, o
nosso Deus, não se apercebeu de que com a sua desenfreada curiosidade e a sua
repugnante indiscrição nos rouba a alma, uma alma, ainda por cima, que se quer
imortal?
Quem é que quer a sério ser
imortal? Quem é que deseja viver para toda a eternidade? Como seria entediante
e vazio saber que o que hoje acontece, neste mês ou neste ano, não tem qualquer
significado. Os dias, os meses e os anos sucedem-se indefinidamente.
Infinitamente, no sentido literal da palavra. Se isso assim fosse, haveria algo
que ainda tivesse importância? Não precisaríamos de contar com o tempo, não
perderíamos oportunidades, nunca teríamos de nos apressar. O facto de fazermos
uma coisa hoje ou deixá-la para amanhã seria indiferente, perfeitamente
indiferente. Negligências milhões de vezes repetidas deixariam de ter, perante
a perspectiva da eternidade, qualquer relevância, e não faria sentido lamentar
algo, pois teríamos sempre tempo para recuperar. Nem sequer poderíamos
entregar-nos à simples fruição do dia, pois esse prazer alimenta-se
precisamente da consciência da caducidade do tempo, o ocioso é um aventureiro
perante a morte, um cruzado contra o ditado da pressa. Se houvesse sempre e em
todas as ocasiões tempo para tudo e mais alguma coisa, onde é que haveria ainda
espaço para nos alegramos com um certo esbanjar do tempo disponível?
Um sentimento não é idêntico
quando surge pela segunda vez. Ele tinge-se de outras nuances devido à
percepção do seu retorno. Nós entediamo-nos e fartamo-nos dos nossos
sentimentos quando eles se repetem demasiadas vezes ou duram demasiado tempo.
Seria então forçoso que na alma imortal se instalasse um descomunal tédio e um
gritante desespero, perante a certeza de que aquilo nunca teria fim. Os
sentimentos querem desenvolver-se, e nós com eles. Eles tornam-se naquilo que
são precisamente porque expulsam o que foram antes, e porque fluem em direcção
a um futuro em que novamente se irão afastar de si próprios. O que é que
aconteceria se esse caudal desaguasse no infinito? Dentro de nós teriam de
gerar-se milhares de sensações que nós, habituados que estamos a uma dimensão
limitada do tempo, nunca conseguiríamos imaginar. De modo que, pura e simplesmente,
não sabemos o que nos é prometido quando ouvimos falar da vida eterna. Como é
que seria continuarmos a ser nós próprios na eternidade, sem o consolo de
podermos, um dia, vir a ser redimidos da obrigação de sermos nós? Não o sabemos
e o facto de nunca o virmos a saber representa uma bênção. E isso porque de uma
coisa podemos estar certos: esse paraíso da eternidade seria um inferno.
É a morte que concede ao instante
a sua beleza e o seu pavor. Só através da morte é que o tempo se transforma num
tempo vivo. Porque é que o Senhor, o Deus omnisciente, não sabe isso? Porque é
que nos ameaça com uma imortalidade que só poderia significar um vazio
insuportável?
Não quero viver num mundo sem
catedrais. Preciso do brilho dos seus vitrais, do seu fresco recato, do
silêncio imperioso. Preciso das marés sonoras do órgão e do sagrado ritual das
pessoas em oração. Preciso da santidade das palavras, da elevação da grande
poesia. De tudo isso preciso. Mas não menos necessito da liberdade e do combate
contra tudo o que é cruel. Porque uma coisa não é nada sem a outra. E que
ninguém me obrigue a escolher.”
In “Comboio Nocturno Para Lisboa”
de Pascal Mercier.